Da ocupação militar brasileira no Haiti à intervenção federal no Rio de Janeiro

Por  Karina Quintanilha

Usando as palavras “Não há guerra que não seja letal”, em 19 de fevereiro de 2018 o Ministro da Justiça do Brasil, Torquato Jardim, declarou que “os militares estão fazendo uma pressão muito grande para ter mais salvaguardas como aconteceu, por exemplo, no caso do Haiti, com aval da ONU, inclusive os protegendo de processos futuros”, referindo‐se às garantias das tropas brasileiras durante a intervenção no Haiti organizada pela Missão das Nações Unidas pela Estabilização no Haiti (MINUSTAH).

A declaração foi dada um dia antes do Congresso Nacional aprovar decreto de intervenção federal anunciado pelo presidente golpista Michel Temer para transferir ao Exército a administração política e econômica da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, garantindo amplos recursos financeiros ao poder militar.

A medida, que impõe estado de exceção, é inédita desde a Constituição democrática de 1988 que rompeu com a ditadura empresarial‐militar no Brasil (1964‐1985) e abre uma brecha sem precedentes para aprofundar as sistemáticas violações a direitos humanos no país, resquício também da militarização da segurança pública no ordenamento jurídico de um país que anistiou e coroou com cargos públicos aqueles que impuseram o terror de Estado.

O Brasil possui hoje a terceira maior população carcerária do mundo e é o país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Na memória, a letra de Caetano Veloso “O Haiti é aqui”, escrita em 1993, se faz presente. Em alusão ao massacre do Carandiru em 1992, Caetano ironizava a herança escravocrata e o recorte racial e de classe na violência estatal no Brasil “E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”. E todos devem saber como o Estado brasileiro trata o preso político Rafael Braga e as crianças nas favelas.

Cretinismo da política‐econômica brasileira: “ninguém é cidadão”

Em meio a reformas antidemocráticas diariamente aprovadas na calada da noite sem debate público, a exemplo da PEC 241 que congela os gastos sociais com educação e saúde, e as políticas contrárias aos direitos dos trabalhadores, como as reformas trabalhista e da previdência, essa última ainda alvo de disputa, os bancos tem anunciado lucro recorde.

Enquanto alguns poucos peixes grandes lucram e privatizam bens públicos, a falsa promessa de geração de empregos reflete os dados do Banco Mundial : estima‐se que até o final do ano, 3,6 milhões de pessoas voltem à pobreza no Brasil. Caso prossiga esse modelo de desenvolvimento desigual, 3,6 milhões de pessoas verão seus rendimentos caírem para menos de R$ 140 por mês. E o que mais está por vir?

A miséria abre espaço mais uma vez para a precarização dos trabalhadores e para os que defendem afrouxar a legislação de combate ao trabalho análogo à escravidão. Deputados da bancada ruralista receberam R$ 3,5 milhões de empresas responsabilizadas pelo crime em 2017. Segundo reportagem , a maior quantia foi embolsada por Samuel Moreira, secretário da Casa Civil do governo Geraldo Alckmin. No estado, 1 em cada 3 trabalhadores resgatados em situação de trabalho forçado eram imigrantes, em sua maioria recrutados para serviços no agronegócio, construção civil e confecção.

Esse contexto atual aponta questões para entender o momento propício para um governo deslegitimado com 3% de aprovação agraciar o mercado com uma intervenção militar fincada na ideologia do medo. Não à toa a Federação da Indústria (Firjan) anunciou apoio à medida.

Haiti, laboratório da intervenção federal?

Autoridades públicas citam a atuação das Forças Armadas brasileiras no Haiti como um exemplo de sucesso que deve ser reproduzido na intervenção federal no Rio de Janeiro. A MINUSTAH, liderada pelo Estado brasileiro, ocorreu de 2004 a 2017, sendo substituída pela Missão das Nações Unidas por Suporte à Justiça no Haiti (MINUJUSTH).

Na mídia, o ex‐comandante brasileiro da MINUSTAH, general da reserva Augusto Heleno defende que “militares possam atirar para matar ao avistar suspeitos portando fuzis ‐‐da mesma forma que ocorria na missão da ONU”. Parte da pedra no sapato já foi encaminhada com a Lei 13.491/2017 , aprovada pelo Congresso Nacional e por Temer, permitindo agora que crimes cometidos pelas forças armadas contra civis sejam julgados na justiça militar.

Além da licença para matar, umas das medidas aplicadas no Haiti e sugeridas por ele é que magistrados concedam mandados de busca e apreensão coletivos no terreno, assim como chegou a sugerir o Ministro da Defesa, Raul Jungmann, que reivindicou mandados genéricos, formas jurídicas do tempo ditatorial que não encontram respaldo na Constituição brasileira.

Um olhar breve sobre dados e relatos do que representou a ocupação armada brasileira no país caribenho pode trazer mais elementos para a solidariedade internacional contra a naturalização do estado de guerra que se arma com mais força agora no Brasil.

A história mostra que o Haiti foi o primeiro país a organizar uma revolução de escravos negros, derrotando a sangrenta exploração colonialista francesa de Napoleão Bonaparte e constituindo a primeira república independente da América Latina em 1804, como narra o livro Jacobinos Negros. Desde então, golpes imperialistas buscam retomar o controle político, econômico e social do país.

O artigo Modelos de Golpe de Estado na América Latina, do professor de economia Héctor Mondragón, retrata as estratégias militares dos Estados Unidos no Haiti desde o início do século XX para “derrotar os movimentos rebeldes e levar as reservas de ouro para Nova York, impondo para isso uma lei marcial no país denominada ‘ Haitian Constabulary ou Gendarmerie d’Haïti’ , força militar colaboracionista, depois renomeada como Garde d’Haïti” . “As tropas estadunidenses somente abandonaram o país em 1934. A retirada dos norte‐americanos como força de ordem, renomeada como Forças Armadas do Haiti pelo ditador François Duvalier em 1958, protagonizaria depois vários golpes de estado”.

Em 2004, após eleição do presidente Jean‐Bertrand Aristide, o Conselho de Segurança da ONU considerou a situação no Haiti como “ameaça à paz internacional e segurança na região”. Foi a vez do Estado brasileiro enviar as tropas das Forças Armadas, liderando a MINUSTAH.

Os resultados da missão de paz são catastróficos , como acontece também em outros países em que a força armada foi instaurada para conter questões sociais. Na favela haitiana Cité Soleil, pelo menos 27 civis morreram em apenas um dia de ação da Minustah, sendo que 20 eram mulheres menores de 18 anos. Foram protocoladas denúncias de estupros de mulheres e crianças haitianas provocados por agentes militares enviados pela “Missão de Paz” da ONU. As mães que geraram ” MINUSTAH babies ” seguem sem apoio da ONU.

Em 2016, a União Social dos Imigrantes Haitianos em São Paulo organizou o evento “Haiti e Brasil: O que temos em comum”. O texto de chamada denunciava a eclosão de um surto de cólera disseminado pelas tropas brasileiras, que provocou 30 mil mortes, responsabilidade reconhecida pela ONU em 2015. Além do cólera, o texto criticava que “A Minustah não resolve nada. Ela não é capaz de reforçar o Estado de direito, a boa governança e a democracia no Haiti. O Estado de direito tornou‐se um Estado de não‐direito. A corrupção gangrena a governança. A democracia está em perigo. Das três eleições organizadas sob a obediência da Minustah no Haiti, apenas a de 2006 não está marcada pela corrupção do golpe de Estado eleitoral. A Minustah trouxe outros sofrimentos ao povo haitiano”.

Mais do que nunca a internacionalização de modelos de golpe, em curso na América Latina, e seus reflexos para o extermínio de vidas humanas, coloca questões como: o que a ocupação armada no Haiti tem a ver com a crescente militarização no Brasil? Como o controle das agitações populares no Brasil está relacionada com aparatos bélicos estadunidenses e israelenses, aplicados na destruição da Síria, Palestina e do continente africano?

A militarização de políticas públicas caminha lado a lado com um projeto político de criminalização da pobreza que possui complexos interesses especulativos de fundo. Pesquisas e análises históricas tem mostrado o quanto o capital lucra com o combate falido da guerra às drogas, com a crescente privatização de presídios, com a venda de armamentos bélicos, com a expulsão de populações de suas casas e territórios, mais de 65,5 milhões de refugiados, para serem submetidas a mão de obra precarizada sob exploração do capital transnacional.

Na sociedade liberal e agora neoliberal, o discurso abstrato de respeito aos tratados internacionais de direitos humanos tem sido substituído cada vez mais mais pela precarização dos trabalhadores e, sempre que necessário, pela mão armada do Estado.

Em um contexto internacional marcado pela guinada à direita e extrema‐direita nos espaços de poder, incluindo a grande mídia, é papel dos espaços democráticos, como o Fórum Social Mundial das Migrações, dissipar a cortina de fumaça sobre os estados de exceção e construir projetos políticos à altura da ofensiva do capital contemporâneo. Um basta às guerras que destroem vidas, por paz e igualdade do Brasil / Haiti / África à Palestina.

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